Gildete Lino de Carvalho nasceu em 04 de março de 1941. Filha do poeta e jornalista Cid Carvalho, Gildete é psicanalista, poeta e especialista em cerâmica artística e pintura em azulejos. Costuma unir as duas linguagens artísticas, como é o caso da obra “Via Crucis”, na qual a autora faz um paralelo entre o Calvário de Jesus e a trajetória do nordestino. A obra é dividida em quatorze estações, todas ilustradas com pinturas em azulejo. Seus livros publicados são: “Via Crucis” (1987) e “O Gigante da Floresta Azul” (1981).
Gildete Lino de Carvalho
Iª ESTAÇÃO
“A morrer crucificado, Deus-Jesus é condenado!”
- Vozes do passado!
- Quem é mesmo o condenado?
O que nasceu sem pecado,
O que viveu perdoado,
apregoando a verdade,
ou o que crimes cometeu
desde a hora em que nasceu
e viveu crucificado?
Nu,
sem vestes limpas,
sem letras,
sem nada,
este homem, nordestino
abandonado menino
teve a sua sina traçada
de nascer
em terras incendiadas
pelo sol esturricante
onde a seiva é roubada
numa torrente constante de sóis .. e sóis,
na claridão do horizonte!
- Gigante precoce, frágil retirante!
Não é uma cruz que carrega
este estranho viandante
Ele próprio é a própria cruz
que um dia, o Cristo Jesus
carregou-a, não sei por onde,
onde a história só responde:
A caminho do calvário
Deus Jesus é condenado!
Sentindo vário, que a história projeta,
Para um infinito, distante!
É o nordestino, aqui, franzino.
Nasce sem ser julgado.
Já nasceu crucificado!
IIª ESTAÇÃO
“A morrer crucificado, Deus-Jesus é condenado!.”
- A mando de um tribunal
sai Jesus a caminho do calvário.
Os joelhos todos dobraram
nos anos que se seguiam,
tamanha a ignomínia!
E a brisa que alisa os campos
e corre que nem menina,
testemunhas essa dor
saiu aos ouvidos dos séculos
segregando tal horror!
E o nordestino,
Adulto, menino,
Velho logo se tornou.
Troca o sertão
que é seu chão,
a caminho de outra cor
qual ave de arribação?
Olha em volta
à sua direita
para a frente
para o alto
sente chamas que lhe queimam
os pés,
os olhos,
a esperança.
Mas, se espelhando na noite
extensa, infinita de luz
disputa com a prole de estrelas,
a escuridão lhe seduz.
E, ao entregar à noite escura
seu cansaço, o seu amor
este homem tão franzino,
sem o saber,
prolifera a própria dor.
E o nordeste é povoado
muita cruz, crucificados!
IIIª ESTAÇÃO
Sob o peso da cruz
cai Jesus,
martirizado
aos açoites do pecado!
As noites testemunharam
chorando com a luz das estrelas
o canto que se fez sagrado:
“a morrer crucificado
Deus Jesus é condenado!”
E o retirante
sem teto
e sem leito
a fome cravada no peito
cai, sem ser mesmo sujeito
da razão do próprio ser!
Pede esmola!
Pede pão!
Já não sabe porque sim
Já não pode dizer não!
IVª ESTAÇÃO
O homem que força coném,
à força
faz de Cristo o condenado.
obriga-o a levar no ombro a cruz
a carregar o peso do pecado.
Eis então
na própria história
outra força
que enxuga o pranto
que recebe a cruz
e envolve-a no próprio manto
- a mãe do Cristo Jesus, Maria!
E o nordestino
pela estrada prosseguindo
dizendo-se forte
à sombra do seu andar incerto
muito perto,
a força da companheira
multiplicada a seus pés.
Vª ESTAÇÃO
Há um caminho percorrido
de grande desolação.
O Cristo é um “eu” combalido
Mas, que não foi esquecido
Pelo homem Cirineu.
E assim, é aliviado
Por momentos, neste percurso sangrento.
O retirante
com a mulher
e os meninos
faz pesar menos
o seu destino
de ser cruz
e a própria dor.
VIª ESTAÇÃO
A caminho do Calvário
não por uma razão qualquer
o filho do Criador
tem um encontro com uma mulher.
Verônica enxuga o seu rosto,
ensanguentado de dor
e eis que a história confirma
na brancura do tecido
e efígie do Salvador.
O nordestino sofrido
enrugado, envelhecido
deixa impressa
a sua queixa,
nos sulcos que se abriram
na terra seca rachada,
incendiada de dor.
Quem olha para os gravetos,
labareda esfuziante
em tronco seco
sem cor
vê
sem o querer
a imagem que se repete
não mãos
no rosto
na planta dos próprios pés.
Quem com quem se encontra?
O chão com o retirante
a quem lhe negou água e pão?
O nordestino
misto de velho e menino
com o chão, e dele fugindo
a vislumbrar mais além?!
VIIª ESTAÇÃO
Quantas quedas
já a segunda
na vida do Redentor!
O homem que se retira
P’ra vencer a própria lida
cada passo, um filho a mais
cada filho mais perdido
na morte
que a sorte traçou.
Cai por terra o nordestino,
fundo,
e a dor
do tamanho do mundo!
VIIIª ESTAÇÃO
- Não chorem, não!
diz o Cristo,
no encontro com as mulheres,
que a ele vão consolar.
- Muito forte é a minha dor,
por ser o pecador
quem me vai crucificar.
Só o pecado, é motivo p’ra chorar.
Sonhador e nordestino
vai menino, o retirante,
pelo sonho a navegar!
Cantando a dor e o cantar,
num instante,
o seu destino
vira arte, vira hino,
com o amor grande das mulheres,
com as bravuras dos meninos,
asas soltas pelo ar!
E assim, a dor que se expande
vai virando outro chorar:
IXª ESTAÇÃO
Tamanha é a exaustão do Cristo
que segue trôpego!
Que difícil caminhar!
Pela vez terceira, cai.
Ai!...
Já não anda o retirante,
nem braços p’ra se apoiar.
O corpo já flagelado
de buscar
não encontrar.
Menos vida, mais morrer,
é assim seu caminhar!
Xª ESTAÇÃO
Desnudo, Cristo Jesus
vai vivendo o seu flagelo
que o mal
malbaratado
qual furacão endoidecido
ferindo toda nação
quer vê-lo
mudo – vencido!
E o retirante,
nu, desde o leito,
com o sentimento no peito,
sem saber que é cidadão.
Tiram-lhe bem cedo,
as vestes do entendimento,
do cosmos que é seu também
e os ilustres da instrução,
para sempre dizer sim,
para nunca dizer não!
XIª ESTAÇÃO
Quem mais só
que o Redentor!
Feridas nas mãos
e no peito.
A cruz, agora, é o leito,
onde se deixou pregar Jesus!
É aqui,
onde a história
se estreita –
a morte do inocente
e a do outro, o penitente,
que nem braços
já os tem!
Reféns de uma mesma história,
em longa trajetória!
Morre aqui, o próprio bem.
E o mal, quem o contém?
- Um, o espectro do outro,
na morte que o outro tem,
na vida que vai além!
XIIª ESTAÇÃO
Cristo já crucificado
aos tempos foi logo erguido,
no mais alto dos montes!
E choraram as fontes.
E os campos arroxearam
suas flores,
por tantas dores,
que numa só transformou.
Maior que o próprio mundo.
Mais dentro
que o poço mais fundo.
E Deus, que a natureza dotou
gritou tão alto e tão duro
que a terra tremeu no escuro.
O Criador escreveu
lá no alto, lá nos céus
em ouro e puro fogo,
escrita do próprio punho,
o seu sentimento profundo,
a sua dor
e o seu desejo de salvar o mundo
que ele próprio criou!
Desde menino,
vem morrendo, o retirante nordestino.
Longo desterro, o seu!
A terra a tremer sob os pés!
Pela primeira vez embalado,
desde que deixou o torrão amado!
É o seu magro enterro!
Em silêncio,
passa à sepultura,
depois de haver sonhado
com o prado verde,
a relva fresca,
o sol em tom desmaiado,
a chuva a beijar os galhos secos
e a explosão de vida
a colorir a estrada,
a encher de amor a própria lida!
E o silêncio se faz!
Aqui o nordestino jaz.
XIIIª ESTAÇÃO
Jesus Cristo é retirado
de onde foi crucificado
Aqui jaz o retirante,
onde a “vida era pouca”
e a morte louca!
Já é outro retirante
como o primeiro, enganado
por quem nesta terra é senhor.
E vai repetindo, o passado,
sendo cruz,
crucificado,
como foi o Redentor!
XIVª ESTAÇÃO
Cristo é chorado
por sua mãe
seus amigos
E a morte,
que a acendeu a dor
no silêncio que o morto traz,
jaz,
Entre lágrimas,
entre ais,
a palavra
lavra a vida,
lavra o amor
e muito mais!...
E o morto,
- retirante e o Redentor –
vai se sendo ressuscitado
aos olhos do sofredor!
No silêncio, que é profundo,
meditam os séculos,
na escuridão do mundo!