A CARRANCA E O RIO


Poesia


Carranca acorda cedinho;

se espreguiça, curte o sol

e grita pra o rio entender:

- “Chico, amigo, se levante!

Venha ver o sol nascer

e desenhar madrugadas

com tintas vindas do céu.

Os barqueiros vão chegar

e querem água corrente

para a barca velejar

pra bem longe da nascente...”

Rio ondula preguiçoso

e mansinho, mansamente,

no leito põe-se a andar.

- “Carranca mandou, obedeço;

não quero carranquear!”

Carranca olha ao redor:

- “Quem vem lá e por que vem?...

Eta neguinho moleque,

não me dá quietação!”

Nego-d’água, serelepe,

queria mesmo brincar,

mas a carranca, zangada,

fez cara de arrepiar.

- “Carrancuda! Carrancuda!

Nego-d’água vai voltar!”

E a Carranca soluçou:

- “Por que me chamam Carranca?

Eu nem sou tão feia assim;

só faço cara de espanto

pra espantar coisa ruim.

Quem me criou é artista,

me pôs até cabeleira...

E ao me fazer repetia:

você sendo a mais bonita

das carrancas beradeiras,

vai proteger os barqueiros.

Nosso rio tem visagem,

tem mistério lá no fundo

de amedrontar meio mundo...

Pois, então! Sou importante!

Faço parte da história

do São Francisco cantado

pelo povo sertanejo.

Sou carranca de valor!

Nas águas deste meu rio,

me vejo bela, airosa,

e lhe pergunto:

-Chiquinho, alguma vez você viu

Carranquinha mais formosa?”

E o rio lhe diz:

- “Dengosa,

tão bela jamais existiu.”

Então a carranca sorriu.

Layze de Luna Britto

Meu Deus! Estou envelhecendo!

Crônica

Há um tempo atrás, quando ainda adolescente, costumava tratar algumas pessoas amigas da família como senhora, professora, ou qualquer outro título que lhes coubesse. Depois, o tempo matreiro foi passando, ou eu passando por ele, e já estranhava tanta deferência com as pessoas com as quais minha família se relacionava. Então, simplesmente, eliminei os cumprimentos, pois eu crescera e elas já pareciam mais amigas minhas do que de meus familiares.

Depois, uma época chegou em que os mais jovens começaram a tratar-me com um certo respeito, chamando-me dona Layze. Até aí tudo bem! Eu nada percebia das mudanças ocorridas em meu corpo. Considerava-me jovem ainda; era bonito esse tratamento respeitoso e eu até pensava que estava ficando importante!

Mais tarde, afastando-me de Juazeiro e passando a residir em Salvador, ao retornar após dez anos, as crianças aqui deixadas já eram adolescentes e estas, gentilmente, chamavam-me “tia”. Algumas até perguntavam: “tia”, não lembra de mim? Sou filha de... e citavam o nome da mãe. Até aí, tudo continuava bem! Eu nada percebia! Despertar e enxergar as mudanças que o tempo operou em mim só aconteceu no dia em que, estando na fila, em um Banco, para fazer um saque no caixa eletrônico, alguém me alertou: “Dona, a senhora tem direito de passar na frente dos outros”. Agradeci e acrescentei; “- Eu sei, mas eu posso esperar”. Passados alguns minutos o rapaz insistiu: “- Dona, se não quer passar na frente dos outros com medo de que a repreendam, por que na vai na fila dos idosos?” Surpresa com tanta insistência, tive vontade de perguntar se o estava incomodando. Já em casa e relembrando o ocorrido, caí na realidade. O tempo modificara meu rosto e eu não notara ou fingia não notar. Lembrei que as crianças menores não me tratam mais por tia; chamam-me vovó e acordei para a realidade. Meu Deus! Estou envelhecendo! O tempo passou sem que eu percebesse!

É tudo tão sutil que nem sentimos nosso corpo se desenvolvendo, os dias expirando, nosso rosto sofrendo alterações: uma ruga aqui, outra ali, a boca tomando outro formato, a sobrancelha caída. E não adianta contestar. Como diz a canção, “é a lei do tempo que ficou p’ra trás, levando momentos que não voltam mais”.

Resta-nos apenas o consolo da saudade e a esperança de que, cada transformação operada em nosso corpo e assimilada por nosso espírito nos dê lições de perdão, exemplos de altruísmo, conduzindo-nos à maturidade e sabedoria. Então, ao pronunciarmos a célebre frase “meu Deus, estou envelhecendo”, podemos sorrir, pensando: “E daí? É a lei do tempo! Cumpre-nos acatá-la.”

Layze de Luna Britto