VAPORZINHO
O Vaporzinho de hoje
é o Vaporzão de ontem.
Como tudo muda!...
A 6 de julho de 1.871,
mesmo sem compensação à incomparável perda
de Castro Alves
que morria naquele dia, mês e ano,
recebeu-o aqui a Bahia,
no porto de Juazeiro,
de Minas Gerais partido,
os primeiros vestígios trazendo
do posterior suposto conforto
de viajar sobre as águas do São Francisco,
e a oficial primeira visita ao país dos angaris
da mais formosa sociedade do percurso.
Algo me diz que há 106 anos era bem diferente
o Saldanha Marinho!
Álcool me diz que hoje são outras as águas.
Do peixe de ferro superaquático
de propulsão a vapor
pelo rio e antigamente
resta a história apenas
e o fim do ciclo.
Navegar já não é preciso
e viver nem impreciso.
O rio quase já nem é visto
e o navegado nada.
Deserto é seu nome
e longe é seu lugar.
E nem pode persegui-lo o Vaporzinho,
nem ser perseguido.
Até o sentido e a direção
de seu não ser mais rio
ao em vez de chegando
hoje é de partindo.
Viagem é o dia a dia
de solidão mais que precoce e bastante
de após despedida a dar-se
a qualquer tempo espaço iminente
ou já defluido.
Rolam as águas
num rumo apenas de saudade.
A marinhagem morreu toda afogada
no rio do tempo.
A tripulação
é a dos navios fantasmas.
No convés, todavia, há festa
de mortos vivos ou de vivos mortos,
ininterrupta como a morte e a vida,
intérmina como o quotidiano
de cabaré e discoteca
em que melancolicamente se vai transformando
o Saldanha Marinho de hoje.
PENITENTES
Quaresma!
Preconícios da dor mais dolorosa
Cantando nênias ao tempo profético.
Pelas aragens da fé
sugestões de adredes cíclicos.
Ermos, solidões e luto
preparando a noite da tragédia e a tragédia da noite,
gestando o advento da hora absurda.
40 dias para a salvação de todos e de cada um.
Mortificações e jejuns
preces e gemidos
choros e lamentos.
Almas de mortos vagando
por cemitérios de vivos.
Vivos e mortos
entre a vida e a morte
na mesma encruzilhada.
Eis os penitentes
e sua indébita penitência
saldando promessas e dívidas
que nunca jamais fizeram.
ALIMENTADEIRAS DAS ALMAS
e FLAFELADORES de si mesmos
cantando ainda a inocência e a ingenuidade
da alma da terra e do espírito do Povo.
São muito mais até
muito mais do que folclore ou fanatismo
essas vozes concertadas
pelo diapasão da dor
no meio da noite matando as sombras;
- erráticos do mundo
pelas veredas do mundo errado
empolgados pela sinfonia
da fraternidade universal
que mesmo a título precário
interpretam com sofreguidão
apesar de tudo.
ESTAÇÃO
Há um trem sempre partindo
de uma estação de saudade.
Há um trem sempre chegando
na saudade da estação.
Há uma estação, amada,
para cada partida,
para cada cheada,
Há, amada, uma estação
para cada viagem
do coração.
Estação da minha vida,
estação da vida minha,
amar-te, amada, é viagem
para ignoto fim de linha.
Estação da minha vida,
estação da vida minha,
amar-te, amada, é viagem
sem chegada e sem partida.
PONTE
Ai! ponte distendida sobre as águas
dos olhos meus choradas como rio.
Rio da vida, que defluis, sombrio,
cantando a morte em cujo mar deságuas.
Ai! trânsito de pólos para fráguas
que amor a um tempo tornas quente e frio.
Ai! infeliz amor, de anos a fio,
entre ir-e-vir por medos e por mágoas.
Ai! ponte sobre o sonho desbruçada,
unindo amantes em os separando,
e os separando em os unindo, amada.
Ai! vai-e-vem do amor, ai! vem-e-vai
de onde para onde e quando para quando.
Ai! meu proibido amor, ai! ponte, ai!... ai!...
PONTE
Ponte outra vez, de um para o outro horizonte,
como da treva à luz, da vida à morte.
Ponte entre o leste e o oeste, o sul e o norte,
como do sol poente ao que desponte.
Entre águas e águas, entre monte e monte,
entre presença e ausência, azar e sorte,
quer nos importe , quer não nos importe,
amor, entre nós dois, amada, é ponte.
Ponte que une e separa, e separa e une,
a um mesmo tempo-espaço-movimento
a vontade, a existência e o pensamento.
Amor infenso a tudo e a nada imune,
que aos que separa torna mais unidos
quanto mais separados e proibidos.
BARCA
Barca da ausência, da distância rio,
amar-te é mesmo uma aventura, amada,
destino ignoto, rota inacabada,
espaço-tempo imóvel-fugidio.
Rio perdido, barca estranha e errada,
amor persegue, amada, o ermo, o sombrio
rumo da solidão, e o murmúrio
das águas da saudade navegada.
Rio da noite, barca da alvorada,
barca de deuses e de sonhos rio,
amar-te é sempre ir navegando, amada,
cheio de nada e de tudo vazio,
para o impossível porto de chegada
que é o mesmo de onde e quando amor partiu.
LAVADEIRA
Angaris,
Angaris!
que todos desprezam
mas eu sempre quis.
Como diz Euvaldo
e Mauriçola diz:
tristes águas
tristes margens
tristes angaris!
Apesar de tudo
apesar de nada
golfo solitário
praia abandonada
ermo porto.
Angaris,
Angaris!
apesar de mim,
rio morto.
Na miséria toda
pedra e areia poucas
e pântano muito.
E apesar de si
crianças brincando
com a própria desgraça
e a do mundo.
Triste do que é triste
por sobre infeliz.
Triste azar
triste sorte
triste vida
triste morte
triste nada
tudo triste
triste angaris!
Angaris, angaris!
tristes angaris!
tristes porque tristes
mesmo menos tristes
que a canção que eu fiz.
Que eu canto a certeza
de que ainda existe
algo ainda mais triste
que a tristeza.
Certeza de um ser
bem mais do que triste
como o véu da tarde
como o céu de noite
e o canto do rio.
E o olhar do menino
faminto e erradio
a brincar de viver
nos angaris.
Angaris, angaris!
Tristes angarís!
Bem mais triste é a incerta
canção mais que triste
que ainda eu não fiz
para esta mulher
que nos angarís
lava anos a fio
lava a vida inteira
pois lava a sujeira
do povo da terra
da terra e do povo
no seu próprio pranto
que sendo este é um outro
Rio São Francisco.
RIO SÃO FRANCISCO
Rio São Francisco.
De longe e de perto
o sertão.
No lombo das águas
são mágoas e mágoas
meu coração.
Por noites, alado.
Nas manhãs de estio,
sem termo.
Sob os céus do Trópico
capricórnio alígero
do ermo.
Cabeleiras d’água,
olhos de luar,
vultos sem conta,
crendices boiando.
Nego d’água, uiara,
ou lontra?
Montanhas, penedos,
planícies, planaltos
afogando.
Córrego, olho d’água,
lago, minação
ou oceano?
Pescador, roceiro,
nadador, remeiro,
lavadeira.
E peixes e peixes,
capim, canavial,
madeira.
Cinzentos e verdes,
barrancos e várzeas
e bancas.
Congos, ternos, lendas,
carrancas e velas
brancas.
Tem-tens, mergulhões,
gaivotas, patos
e garças.
Vapores, paquetes,
lanchas, barcas, botes
e balsas.
Barragens, eclusas,
usinas, cachoeiras
e pontes.
Águas, águas, águas,
para além e aquém,
e horizontes.
Mas... pobre sertão
apesar de tudo,
por enquanto.
Rio São Francisco.
Da canastra ao mar,
meu pranto.